domingo, 5 de janeiro de 2014

O desejo e Laura Gutman

Li um livro esses dias que se chama Crianza, violencias invisibles y adicciones, de Laura Gutman. Vou traduzir dois trechinhos para comentar aqui…

Para não permanecer lamentando-nos do nosso passado, tenho intenção de refletir sobre o seguinte: nós, esses fluxos necessitados nos tornamos os adultos que somos. Continuamos sempre atentos em satisfazer como possível nossas necessidades ocultas. Não importa que pertençam à nossa infância, porque para nossa estrutura psíquica elas continuam sendo tão prioritárias como quando éramos crianças.
Ou seja, estamos sempre na pendência de algo que necessitamos: acreditamos que se trata de dinheiro, de ascensão social, um bom trabalho, casa, férias, objetos que tragam conforto, roupas, CDs ou acesso ao cinema. Na realidade, não se trata de nada disso. Estamos órfãos de "mamãe", de "maternagem primordial". Mas não sabemos disso. E não saber disso é um grande problema, porque continuamos deslocando nossas supostas "necessidades" para todo tipo de atividades e objetos que acreditamos que são indispensáveis para viver. Como podemos nos dar conta de que são objetos deslocados? Porque não importa com quanta comida nos saciamos, quantos cigarros fumemos ou quantas casas compremos… sempre precisaremos de mais. Lamentavelmente, ainda que obtenhamos reconhecimento, êxito ou dinheiro, nunca teremos mais a "mamãe".
Com este panorama desanimador, que capacidade emocional temos para nos dedicar à maternidade ou à paternidade de um bebê que chega ao mundo com uma voracidade espetacular? Muito pouca capacidade, obviamente. Porque vamos pôr à frente -- inconscientemente, é claro -- nossas necessidades emocionais às necessidades imensas e incompreensíveis do bebê.
[…]
Não estou afirmando que qualquer capricho de balas, brincadeiras ou passeios mereça o acompanhamento do adulto. Não. Falo do desejo profundo com relação ao ser essencial, de diretrizes que desenham a personalidade e constituição de cada indivíduo. Durante toda a infância, as crianças vão "experimentando", por meio de diversas atividades, suas virtudes, destrezas, aptidões, assim como suas incapacidades em tal ou qual atividade. O acompanhamento franco e livre permite às crianças usar o máximo da fantasia e passar de uma atividade para a outra, ainda que díspares, já que é na diversidade que encontrarão seu vigor. Por outro lado, as crianças guiadas pelo desejo de seus pais estarão eternamente prisioneiros do desejo dos outros, sem verificar quem são no fundo do seu ser. Para permitir tamanha experiência às crianças, é preciso pais sem medo. Pais que confiem na busca genuína dessa criança. Pais que confiem, por sua vez, na busca que vêm realizando para suas próprias vidas. Possivelmente a palavra-chave seja: confiança. 

Sempre reflito sobre a questão das "coisas". Acho tão engraçado quando me perguntam: "E você não tem carro? Como você faz, com três crianças?".
Ora… me locomovo. Ando, pego trem, ônibus, táxi, carona… Por que as pessoas passaram a acreditar, de uns anos para cá, que carro é algo tão essencial assim? Quando eu era pequena, lembro-me de várias aventuras (agradabilíssimas e outras nem tanto! E não é essa a beleza da vida?) em meios de transporte público urbano (porque, pois é, ainda não morei na roça apesar das minhas vinte e tantas mudanças).
Assim como me lembro de não ter tantas coisas e elas, de verdade, não me fizeram falta. Como não me fazem hoje! Tudo bem: estou em uma casa bastante confortável, com internet, telefone, eletricidade, água etc. etc. etc. Reconheço que tenho muito mais que muita gente pelo mundo, mas sei também que tenho muito menos que outras tantas e não desejo mais. O que me choca, às vezes, é o eterno desejar das pessoas.
Quando alguém me mostra algo, geralmente fico feliz, pois empatizo com a alegria da pessoa. Mas depois, pensando comigo, me questiono: "Será que aquela pessoa precisava mesmo daquilo para se sentir feliz?".
E quando vejo a Anna brincando numa poça, o Igor equilibrando uma vareta ou o Caio feliz da vida porque encontrou uma folha "gigante" tenho a certeza de que poderíamos nos contentar com o que a natureza nos oferece.
E quando uma careta é o melhor brinquedo de todos os tempos?
E quando um relógio de papel é super especial?
E quando um problema passa ser uma brincadeira?
Quando foi que nós, adultos, passamos a acreditar que o consumo taparia esse buraco no peito? Não, minha gente… Cada dia eu tenho mais certeza de que esse buraco no peito, que pode sim ter aparecido lá na nossa infância, com pais que não conseguiam suprir os próprios desejos, que dirá os nossos, só pode ser preenchido pela realização de desejos genuínos. Reflita aí: qual é o seu maior desejo? Aquele que você não conta nem pra si próprio…? Aquele que ficou perdido num tempo em que você era integral, mas que seu pai e sua mãe, sem saber, acabaram jogando para debaixo do tapete, pois os desejos deles eram mais importantes que os seus?
Assim que você tiver a resposta, corra atrás dos seus sonhos. Sério! Seu buraco no peito vai desaparecer e, certamente, seus filhos (se os tiver) serão muito mais felizes.
Ah, tô aqui (crianças, saiam da sala que vai vir palavrão) cagando regra, mas também estou na minha busca… Quem é mais próximo sabe que sou boa no meu trabalho, mas não quero morrer estando editora. Quero lidar com pessoas, quero ajudar os outros, quero mudar o mundo. :)

6 comentários:

  1. Lindo post, Pê, e uma ótima provocação. Agora vou pensar em como fazer a lição de casa. :)

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  2. As fotos estão tão poéticas quanto o fim do seu texto!
    Parabéns pela busca. Creio que nela a gente já passa a se realizar, não é? Precisamos sempre de um ponto no horizonte para seguir e, que lindo, seu ponto não é material, por isso vale tanto! O meu, sei lá, no momento tem um pouco de tudo, preciso discerni-lo! ;-)

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  3. Que reflexões mais lindas e valiosas, Pê! Admiro imensamente sua coragem e me emociono muito com o que vcs estão construindo.
    Suas palavras são sempre inspiradoras!
    Beijo grande,
    Lavínia

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  4. U-A-U. Nem sei bem o que nesse texto me fez entrar em "outra dimensão" e desencadeou tanta coisa em mim! Minhas necessidades, minhas "birras", minhas formas de tapar buracos... rsrs...

    Tocou tão fundo que precisei me organizar escrevendo isso: http://depoisdebenjamin.blogspot.com.br/2014/04/necessidades-desejos-e-conexao-birra.html

    Muito, muito obrigada, Penelope! Seu blog está sendo uma delícia de ler e uma aprendizagem incrível.

    Gratidão define!

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    1. Roberta, li seu texto. E, como te disse, não fui eu! Foi Laura Gutman. Ela faz isso com a gente… hehehehe

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